domingo, 7 de maio de 2023

Ser sem aparecer

Texto: Jamille Ipiranga

Ilustração: Marcilene Damasceno

Ser a primeira a chegar, sentar perto das autoridades, ter atenção de todos, ser a mais competitiva, a mais popular, a mais isso ou aquilo. O que dessas coisas, de fato, nos realizam ou agregam na nossa vida? Queremos mostrar esses resultados para os outros ou essas ações nos realizam verdadeiramente?

Tenho a sensação que a plenitude humana está relacionada a estar no meio das pessoas, pertencer, agregar onde estiver, existir de forma ativa e atenta, ter compaixão, ouvir os sons da natureza e de Deus. Sentir os cheiros dos banhos e dos temperos, saborear a escrita sentida, a música ouvida, a conversa falada. Se ligar mais nas pessoas e se desligar dos eletrônicos. Difícil, mas possível.

Todas essas situações cotidianas quando vivenciadas intensamente são afortunadamente a melhor forma de se conectar com algo maior, além de viver com plenitude e felicidade. Sem precisar de primeiros ou últimos lugares. Dispensando o que é coisa e valorizando pessoas. É sobre ser e não somente aparecer.

Os últimos

Texto: Jamille Ipiranga 

Ilustração: Marcilene Damasceno 

Ser a última num mundo que idolatra os primeiros não é fácil. Sentia-me assim na escola, na família, nas amizades. "Os outros" pareciam se destacar mais. No ambiente escolar não pertencia a turmas, guetos. Sentia-me atrás, sozinha.

Por outro lado, conseguia me sair bem em algumas situações, mas não as reconhecia. A desvalorização sempre esteve presente. O que isso teve de bom na minha vida? Muita coisa. Sinto e entendo a dor dos "últimos". 

Sei o peso de se sentir excluída, ou por ser diferente ou por não ter o desempenho que esperam. Alcanço o sentimento de não pertencimento daqueles que não estão nos padrões exigidos. Por vezes, escolho ficar por derradeiro.

Quantas vezes os que não tiveram oportunidade são julgados? As pessoas em situação de rua, os viciados ou mesmo os mais atrasados da sala? Os que não conseguiram alcançar algumas metas, os que não chegaram nos primeiros lugares das competições, as pessoas  LGBTKIA+.

Há uma invalidação social caso você não siga padrões ou tenha a "alta performance" alardeada nas teorias de ser "bem-sucedido".

É importante incluir quem está só, quem não é visto, compreendido ou ouvido. Acredito que terão um lugar especial em algum tempo, nalgum lugar e no coração de Deus.

Não é simples discordar da lógica social em que casa, carro, turmas e bens materiais são as balanças de pesagem do sucesso. Por outro lado, a simplicidade é mais acolhedora, mais sustentável e mais sã.

Olhemos pelos que estão à margem e aprendamos com eles. Se olharmos bem, quem está mais atrás como o peixinho da ilustração, a visão é mais alargada, o horizonte é mais amplo. Lembremos que "muitos primeiros serão últimos; e muitos últimos serão os primeiros".

quinta-feira, 30 de março de 2023

De mulher para mulher

Texto: Jamille Ipiranga

Ilustração: Marcilene Damasceno

No meu caminho do trabalho para casa, procuro observar as pessoas, especialmente as mulheres. Nós somos múltiplas.

Passos apressados e firmes. Horas, vagarosas.

Cheias de sacolas de compras. Roupas, sandálias, mercantis. Às vezes, sacolas de esmolas.

Somos pretas, pardas, asiáticas, loiras, encaracoladas, crespas, carecas. Predominamos num padrão de cabelos alisados, apesar de sermos mais belas pela nossa diversidade.

Cada mulher, uma história, uma luta. Muitas lutam para sobreviver. Outras lutam por uma luta. LGBTKIA+, assédio sexual, moral, patrimonial, importunação sexual, PCD’s, raças, minorias.

Há lutas pela defesa dos direitos dos filhos. Enfermos, autistas, com síndrome de down ... Filhos sem comida, sem escola, sem saúde, sem lar, sem pátria. Muitas são sós sem estarem sós.

Continuo minha caminhada. Vejo agora uma mulher de roupa branca. Morena, cabelos pretos, estatura mediana, meia idade. Quais as lutas dela? Suas marcas de expressão marcam o meu olhar. Nos entr­­eolhamos. Seguimos.

Cada qual com a sua labuta. E o que a minha vida tem a ver com a sua lida? Qual a nossa intercessão?

Nosso ser mulher nos une num mundo que nos subordina, nos paga menos, nos inferioriza, nos exclui, nos assedia, nos amedronta, nos violenta e nos mata.

Precisamos lembrar de quem somos e do que fazem conosco só porque somos do gênero feminino. Comecemos por nos olhar, nos enxergar, nos compreender. É fundamental atuar para que nossas lutas incluam a defesa da vida em abundância para todas as mulheres.

sábado, 11 de fevereiro de 2023

Fale menos e escute mais



Texto: Jamille Ipiranga

Ilustração: Marcilene Damasceno

Você já teve a sensação de conversar com alguém e que o diálogo se transforma num monólogo?

Você ouve, mas na hora de falar a outra pessoa não consegue te escutar. Você até que tenta, mas a ausência de respiração alheia te impede.

Às vezes, dá vontade de dizer: "respire", ou "silencie" para que você possa processar o que está sendo falado e tornar-se uma conversa.

Tem horas que eu penso que é um pouco de carência. Quem sabe está se sentindo só e não tenha com quem conversar.

Outras vezes, penso que é egoísmo, pois a pessoa está tão voltada para si e para suas questões que não consegue ouvir, ver ou sentir o outro.

E por fim, analiso que pode ser resultado dessa vida frenética, onde não dá tempo de pensar, refletir ou silenciar, e o que resta é falar. 

Sem mencionar que além de aprender a ouvir, também podemos aprender outros talentos e habilidades que provavelmente não tenhamos. Aprender um modo diferenciado de ver e de viver a vida, mas para isso precisamos silenciar.

Por isso, sejamos mais humildes e fiquemos atentos para o que está ao nosso redor e principalmente quem está ao nosso redor. A conexão com o ser humano passa pela comunicação, que é uma vida de mão dupla, assim como pela empatia. Falemos, mas ouçamos também.

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Óculos sujos ou vista embaçada?


 

Óculos sujos ou vista embaçada

Texto: Jamille Ipiranga

Ilustração: Marcilene Damasceno

Sempre tenho a sensação que as lentes dos meus óculos estão manchadas. E olho para o par alheio e acho que está irritantemente limpo.

Já entrou na lista das obrigações matinais limpar os benditos óculos, mas parece que mesmo eu me disciplinando, nada muda. Continuo com vista turva.

Lembrei do ditado em que o jardim do vizinho é sempre mais verde. Dá certinho: os óculos alheios estão sempre mais cristalinos. Como sempre, a vida imita a arte e a metáfora imita a vida. 

O meu par de óculos e a minha vida são reais e tem horas que estão bem e outras que não vão lá essas coisas. Tudo normal. Da mesma forma, a vida das outras criaturas segue o mesmo curso da balança: horas pra cima, horas pra baixo.

Nem sempre o que eu enxergo é a perspectiva real ou única. Minha visão política, orientação sexual ou religião não são absolutas nem melhores. São só a minha forma de ver, de ser e de crer.

Fácil deduzir então que meus óculos podem estar sujos nalguns momentos, mas noutros vão me dar a melhor visão do mundo. O importante é respeitar todos os pontos de vista, buscando sempre a nitidez do coração e da alma. 

domingo, 3 de julho de 2022

Se nada der certo, nade peito!

Texto: Jamille Ipiranga

Ilustração: Marcilene Damasceno

Engoli água, pernas batiam em mim, pensei que eu ia me afogar. Vi os bombeiros. Sair carregada não era uma opção. Ser desclassificada não estava na lista das metas. Foi aí que eu me lembrei do meu nado de emergência, "nado peito". Mudei para ele. Foquei na respiração. A falta de fôlego permanecia, mas foi aliviada.

Consegui fazer uma volta. Já se foram 250m em mar aberto. Tinha que dobrar a meta. Na rotina normal, 1000m era comum realizar, mas numa competição, o mar muda de figura e a emoção também.

A tábua de salvação era o nado peito. Sempre me acalmou. Voltava a respirar bem. Dava-me segurança. Tornava o impossível, possível. Num mar cheio de desafios físicos e emocionais, receio de estar no percurso errado. Eu respirava e nadava, nadava e respirava. Meu maior trunfo era a persistência. Cheguei na chegada. 

A vida se assemelha a esse momento. Tem horas de angústia, de dor e desespero. Para onde seguir? O que fazer? Para quem contar, ou melhor, com quem contar? Sigo ou levanto a mão desistindo? E se a cabeça não acompanhar a vontade e o corpo falhar? A respiração faltar?

Nade peito. Chame as pessoas em que você confia. Chore e esvazie a mágoa. Nade peito. Durma e acorde melhor. Procure uma terapia. Reze e confie. Nade peito e tenha sempre uma saída de emergência e uma tábua de salvação. Serão muito úteis nos dias de mar agitado e de vida revolta. Vão te ajudar a alcançar a chegada.


terça-feira, 24 de maio de 2022

Música desde deles


Música desde deles

Texto: Jamille Ipiranga

Ilustração: Marcilene Damasceno

LP's, encartes e radiola rodearam a minha infância. Os irmãos mais velhos já compravam seus próprios discos. Sorte minha. Elis, Alceu e Caetano dariam o tom na Rua Frei Teobaldo, 208, no Carlito Pamplona. Já tive alguns endereços, mas esse ficou encantado. Acho que a culpa é da música. 

Além da MPB, o cardápio incluía rock dos Titãs e da Blitz e o samba da Alcione. Todos eles comporiam um grande acervo que só depois eu entenderia que muito me influenciaria, até os dias de "Alexa". Balão Mágico e os Três Patinhos confirmavam que criança também tinha suas preferências. 

Do papai, eu herdei o gosto pelo baião. Sou fã obstinada do Luiz Gonzaga. Aliás, sempre fui. Vez em quando, dançava na sala com meu mentor do ritmo nordestino mais famoso. "Essa menina vai ser forrozeira", profetizada Pedro pai.

Clara Nunes era idolatrada pela mamãe. "Morreu tão jovem". E cantarolava "Feira de Mangaio". Farinha, rapadura e graviola faziam parte da nossa despensa. Mamãe me ensinou que não tinha época para aprender. Sentava de banda na sua cama, ajeitava o violão e dedilhava letras de seresta. 

Voltando para o forró, tivemos momentos quase de despedida. Chegou o tempo em que o amor desafinou. Os discos de Gonzaga saíram de perto de Clara. No dia marcado para papai pegar seu quinhão, eu sabia que a coletânea do Rei do Baião entraria na mala. 

Com meus 12 anos recém completados, senti-me no direito de ficar com o meu LP preferido. Garanti que "Roendo Unha" tocasse por vários anos na nossa radiola e que "Vinvin" cantasse atrás da serra quando o sol tava pra se esconder. No caso dos Ipiranga, não gostar de música nunca foi uma opção.

E dessa forma, entre músicas, influências, sentimentos, despedidas, dores e sons, adquiri um gosto musical peculiar, eclético e genuíno. Dou viva ao baião, ao samba, ao rock e à MPB. Gratidão meus irmãos, obrigada pai, obrigada mãe.

Porque sempre vai existir "um sanfoneiro no canto da rua fazendo floreio para gente dançar" e relembrar os momentos que os sons vão eternizar.