Texto: Jamille Ipiranga
Ilustração: Internet / Pinterest (autor desconhecido)
Vou contar uma história sobre Luiz Gonzaga do Povo que não está nos inúmeros livros editados sobre sua vida, não está nos diversos cordéis que esboçam a saga do Rei do Baião, não se encontra nas apresentações artísticas assistidas nos DVD’S de shows ou gravações, mas foi tirada do coração e da memória de quem conviveu por mais de 15 anos ao lado do eternizador da cultura nordestina. Falo de VANDELÍRIO ALVES MAIA, limoeirense residente na Princesinha do Vale, nosso conhecido e querido “Maia” do Posto, atualmente casado com a tabuleirense Damiana Maia. Nosso entrevistado fala com propriedade sobre Luiz Gonzaga, pois foi casado durante anos com a sobrinha do Mestre Lua, Ana Vitória Rocha, filha de D. Socorro, sua irmã. Sendo que os vínculos não se limitaram apenas neste laço familiar. Nosso limoeirense era o administrador do parque e do posto que Seu Luiz (pois é como Maia chama Gonzaga até hoje), era proprietário de um posto de gasolina em Exu-Pernambuco, sua cidade natal, e além de entregar a administração ao Maia, este também era detentor de tanta confiança, que sua conta corrente era conjunta com o Lula, outro apelido carinhoso que tinha, além de possuir procuração para administrar seus bens, inclusive vender, de quisesse. Do alto de tamanha e irrestrita confiança, que espantou o próprio Gonzaguinha, Maia ao falar do Gonzagão, o faz com a admiração que se tem a um pai e com o saudosismo de quem sente falta de um grande amigo que se foi. “Eu vou mostrar pra vocês como se dança um baião e quem quiser aprender, favor prestar atenção...” (Baião – Luiz Gonzaga)
Por isto, caros leitores, esta matéria além de representar uma satisfação muito grande, pois esta colunista do Folha do Vale, que agora ensaia ousadamente de entrevistadora, é fã desde tenra infância de Luiz Gonzaga, trazendo-me imenso orgulho em falar de um dos maiores, senão o maior, propagador da cultura, música, sentimentos e costumes nordestinos. Agora vamos deixar de prosa e aviar esta conversa, pra mode assuntarmos os causos do Gonzagão, pelas vistas de um limoeirense.
COMO TUDO COMEÇOU
Antes de falar de nossa conversa com Maia, falemos brevemente, para contextualizar nossos escritos, do Rei do Baião. Luiz Gonzaga do Nascimento nasceu em 13.12.1912, na Fazenda Caiçara, em Exu-Pernambuco, segundo filho de Januário José dos Santos (do fole de 08 baixos) e Anna Baptista de Jesus - Santanna” (que deu uma alta surra em Luiz Gonzaga, após ele peitar o padrasto de sua amada na juventude). Seu nome foi dado por um padre amigo da família, e já anunciava o berço católico que envolvia o famoso pernambucano. Destrinchando o nome: Luiz – escolhido porque nasceu no Dia de Santa Luzia; Gonzaga pois São Luiz tinha Gonzaga em seu nome; Nascimento para representar o mês que Jesus nasceu. Além de um nome de raízes fortemente católicas e cristãs, ele também já predizia a sorte, o sucesso e a luz que permeariam a vida deste nordestino. “Trouxe um triângulo, no malotão / Trouxe um gonguê, no malotão / Trouxe um zabumba, no malotão / Xote, maracatu e baião / Tudo isso eu trouxe no meu malotão". (Pau de Arara, Luiz Gonzaga / Guio de Morais).
Esta breve introdução anuncia a história de Gonzagão, cheia de baixos e altos, de intensidade, de brilho e de muitas paixões. Falando nisto, teve muitos relacionamentos, dentre eles, Nazinha, seu primeiro amor da juventude, aquele por quem quase cometeu uma loucura e por quem levou uma bela surra de sua mãe Santana. Temos que registrar seu enlaçamento com Odaléia Guedes, cantora carioca, mãe de Gonzaguinha. Não descuidemos de Helena Cavalcanti, a esposa oficial, com quem adotou uma filha chamada Rosinha. E Edelzuita, com quem dividiu, juntamente com Helena, seus últimos dias, e por quem nutriu imenso carinho. Como disse, foi homem de muitos relacionamentos, alguns concomitantes, outros polêmicos, mas todos com um vértice de muita intensidade. “Vem morena pros meus braços / Vem morena, vem sambar / Quero ver tu requebrando / Quero ver tu requebrar (...) Esse teu fungado quente / Bem no pé do meu pescoço / Arrepia o corpo da gente (...) Deixa o sangue em alvoroço”. (Vem Morena, Luiz Gonzaga / Zédantas)
EM TERRAS CEARENSES E CARIOCAS
Luiz Gonzaga fincou raízes no Ceará, pois quando fugiu de casa e foi servir ao Exército, o Ceará foi seu destino, iniciando pelo Crato, e após, veio servir no 23 BC em Fortaleza, onde conheceu o mar, em primeira mão. “Vocês vão me adesculpar, mas arrepito essa expressão: No Ceará não tem disso não, não tem disso não...” (No Ceará não tem disso não". – Luiz Gonzaga / Guio de Morais).
Após aproximados 10 anos de serviço militar, Luiz Gonzaga foi tentar a vida no Rio de Janeiro, e a partir de então, depois de muito trabalho, esforço e valorização da sua origem nordestina, começou uma carreira de sucesso. Grandes parcerias com talentosos compositores lhes abriu portas, assegurando qualidade e originalidade ao seu trabalho. “Quando eu vim do Sertão / Seu moço / Do meu Bodocó / A malota era um saco / E o cadeado era um nó / Só trazia coragem e a cara / Viajando num pau-de-arara / Eu penei mas aqui cheguei.” (Pau de Arara – Luiz Gonzaga – Guio de Morais).
PATERNIDADE
De seu enlace com Odaléia Guedes, veio a paternidade assumida por laços de amor, pois se sabe que Gonzaguinha não era filho natural de Luiz Gonzaga, mas foi assumido como se o fosse. A mãe de Gonzaguinha morreu cedo de tuberculose, o que fez Gonzagão deixar o filho aos cuidados de um casal de compadres bastante amigos. Talvez a partir deste fato, tenha havido um distanciamento natural entre pai e filho, apesar que toda a assistência material fosse garantida pelo pai, entretanto, anos depois, ficaria comprovado que os dois não teriam relacionamento fácil. Atrevo-me a dizer, com olhos de mãe, que muito provavelmente, Gonzaguinha se sentiu abandonado por mãe e pai, apesar dos dois, em hipótese nenhuma, terem descuidado do filho conscientemente ou intencionalmente. Também teve outra filha, Rosinha, fruto de seu relacionamento com Helena Cavalcanti.
CAUSOS DE GONZAGÃO, SEGUNDO MAIA
Feito este breve histórico, passemos a algumas narrativas contadas pelo nosso entrevistado Maia, que ao sabor da convivência, nos contou situações peculiares da vida deste sertanejo, ora calmo, ora caridoso, ora engraçado.
a) SOLIDARIEDADE - Nosso Gonzaga, antes de tudo, era um homem bom. Era comum ajudar as pessoas. Certa vez, um menino teve seu olho furado, e sua mãe foi pedir ajuda ao Rei do Baião, sendo que este não titubeou em prestar socorro, colocou o menino no carro, e junto com Maia, viajou até Belo Horizonte, saindo de Exu, para dar o melhor tratamento ao garoto, pois o ferimento era grave. Resultado: retornaram a Exu, com o menino bem, e feito o procedimento necessário em seu olho. Coisas de quem é extremamente generoso.
b) SECA - Na época da seca, em que as pessoas passavam necessidades e faltava alimento em casa, nas festas que tocava, Sr. Luiz cobrava como ingresso alimentos para doar a quem precisasse, e desta forma aplacava a fome dos que careciam de ajuda. “Quando a lama virou pedra / E mandacaru secou / Quando ribação de sede / Bateu asas e voou / Foi aí que eu vim m’embora...” (Paraíba – Luiz Gonzaga / Humberto Teixeira).
c) MICROÔNIBUS - Luiz Gonzaga custeava a ida, através de microônibus, de estudantes da Cidade do Crato para Exu, para estudarem, semelhante ao itinerário que fazem os estudantes de Limoeiro do Norte a Mossoró.
d) LIMOEIRO DO NORTE - Como bom maçom que era, realizou show em Limoeiro do Norte e o valor arrecadado foi doado para a Loja Maçônica, à época dirigida pelo médico Venerável Dr. Osias Lima. O valor foi revertido para aquisição de aparelhos de ar-condicionado, sendo que inicialmente havia sido acordado a doação de parte do cachê, mas o sanfoneiro fez questão de entregar integralmente o que recebera. O arrasta pé ocorreu na quadra do Ginásio Diocesano, e foi prestigiado por um bom público. Por ocasião de sua vinda, foi entrevistado à época pelo radialista Pedro Jaime da Rádio Vale. Dr. Osias, nos complementou ainda, que Luiz Gonzaga se hospedou juntamente com sua esposa Helena em sua casa, e que ficaram até tarde conversando. “O candeeiro se apagou / O sanfoneiro cochilou / A sanfona não parou / E o forró continuou...” Forró no Escuro, Luiz Gonzaga.
e) AMADO BATISTA - Certo dia, Gonzagão e Maia viajando pela Serra do Exu, viram um carroceiro levando uma carrada de laranjas e de posse de um LP de Amado Batista. Vendo esta cena, Gonzaga pediu emprestado ao carroceiro o dito LP, prometendo que devolveria depois. Logo em seguida, ligou para Amado Batista contando o acontecido e dizendo ao colega que ele estava famoso até na Serra do Exu. Obviamente, como prometido e como mandava seu apurado senso de honestidade, devolvera o LP ao dono. Seu intuito era dizer ao colega de profissão, que estava famoso até no sertão do Exu.
f) PADARIA - Luiz Gonzaga tinha o costume de ir à padaria e sair comendo o pão pela rua. Certa vez, alguém lhe disse: “Seu Luiz, comendo pão no meio da rua!” Ele, muito ligeiro, respondeu: “E eu vou alugar uma casa pra isso?”
g) COMIDA REIMOSA - Nosso artista tinha uns probleminhas de intestino, mas adorava comer o que não podia: buchada, galinha capoeira, capote. Num dia, sentado para almoçar, colocaram uma buchada perto dele, e Maia, sorrateiramente, puxou a buchada para longe do seu Luiz, para evitar que comesse algo inapropriado, mas este, já tendo notado, puxou de volta e arrematou: “Traga isso para cá, menino”.
h) GUADALUPE - Ganhou da Chevrolet um carro, e junto com Maia, viajaram para Cidade de Guadalupe. No meio do caminho, Gonzaga se embelezou, numa revendora de carros, por uma F-1000, cabine dupla, sugerindo logo trocar o carro que havia ganhado da Chevrolet pela F-1000, dando para isto um cheque do Bamerindus. Saiu da loja, morto de satisfeito, com seu novo carro, sem emplacamento. Chegando em Guadalupe, ficou decepcionado pois se tratava de festa de vaquejada, e nosso ambientalista sertanejo não apreciava a derrubada dos bois, mas por insistência do prefeito, ficou e tocou. Resultado: saiu de Guadalupe de carro novo com placa de Guadalupe! Como sabia que o sanfoneiro Dominguinhos gostava da cantora de igual nome, mandou de presente para ele a tão polêmica placa, deixando marcado neste acontecimento seu temperamento ousado, impulsivo e brincalhão.
i) MACACÃO FORD - Ele havia feito contrato com a Ford, que entre as cláusulas, estava a de usar um macacão branco com a logomarca da empresa Ford. Numa viagem que tinham feito ao Crato para comprar cerâmica para o Posto, Luiz Gonzaga teve uma dor de barriga e pediu para Maia parar o carro. Foi literalmente para os matos, e se agarrou a um galho para se apoiar. Pois não é que o galho se quebrou, seu Luiz se desequilibrou, aí vocês imaginam, a “merda tava feita”, e o nosso sanfoneiro entrou no carro coberto de bosta, mas como rezava o contrato, mesmo assim vestiu o macacão. O pobre do Maia teve que aguentar o fedor até chegarem em casa, quando Gonzaga saiu do carro, gritou para sua esposa: ”- Helena, abra a porta que eu tô todo cagado.”
j) CARACTERÍSTICAS E HÁBITOS - O mestre Lua detestava fazer as refeições sozinho. Muitas vezes, mandava chamar Maia ou outras pessoas para acompanhá-lo e espantar a solidão. Tinha o costume de fazer caminhadas pela manhã. Possuía uma memória impressionante, bastava que visse alguém uma vez, para sempre se lembraria. Era um homem sem vícios, mas quando tomava cerveja, algo raro, tinha preferência pela Malte 90. Era apaixonado pelas grandes excursões, percorrer todo o país, experimentando outros estilos de viver, levando logicamente sua sanfona consigo. Tinha gostos peculiares, exclusivos, não era dado a imitações. “Minha vida é andar por esse país / Pra ver se um dia descanso feliz / Guardando as recordações / Das terras onde passei / Andando pelos Sertões / E dos amigos que lá deixei...” (Vida do Viajante – Luiz Gonzaga / Hervê Cordovil).
k) RETORNO AO SERTÃO - Nos anos 80, quando Luiz Gonzaga resolveu retornar para Exu, pediu a Maia que transportasse suas peças, comendas, títulos, objetos pessoais, LP’s (que viria a compor seu Museu) do Rio de Janeiro para o Exu. Maia, prontamente, trouxe todo o acervo de Luiz Gonzaga diretamente do Rio de Janeiro para o Pernambuco. Já representava o retorno do Rei do Baião as suas origens. “Lá no meu pé de serra ; Deixei ficar meu coração ; Ai que saudade eu sinto ; Quero voltar pro meu sertão” (No meu Pé de Serra, Luiz Gonzaga / Humberto Teixeira).
MORTE DO MESTRE LUA
Luiz Gonzaga do Nascimento morreu em 02 de agosto de 1989. O Sertão, o Nordeste, o Brasil ficou de luto. Perdíamos não só um artista, perdíamos um pouco de identidade, de referência, de mito. O Mestre Lua nos representava, levava no peito nossa marca nordestina. Quando Gonzaga cantava e encantava, ele levava o sentimento de que nós também estávamos lá, de importância, de igualdade, de respeito. É tão sublime e imponente sua importância, que até hoje, quando ouvimos, dançamos ou tocamos suas músicas, sentimo-nos orgulhosos pela genialidade deste artista que soube tão bem levar as riquezas dos sertões em seus baiões, xotes ou xaxados. “Luiz Gonzaga não morreu / Nem a sanfona dele desapareceu / Seu automóvel na virada se quebrou / O zabumba se amassou / Mas o Gonzaga não morreu.” (Viva o Rei – Zé Amâncio / Zé Gonzaga).
Para concluir, transcrevo frase dita pelo estimado Gonzagão, numa declaração de amor e lealdade as suas origens: “Eu me lembrava do Nordeste, eu queria cantar o Nordeste. E pensava que o dia em que encontrasse alguém capaz de escrever o que eu tinha na cabeça, aí é que eu me tornaria um verdadeiro cantor.”
Em 13 de dezembro de 2012 foi comemorado o Centenário de Luiz Gonzaga do Nascimento, e para celebração de data tão relevante, escrevi essa pequena contação de “causos”. E Viva o Rei do Baião!!!